terça-feira, 24 de novembro de 2009

As palavras-cor-de-rosa e As palavras cinzentas

Numa reunião de Conselho de Turma Intercalar, a Directora de Turma, professora de línguas, detentora de uma sensibilidade extraordinária e amante do poder das palavras, leu este maravilhoso conto, que não consigo deixar de o partilhar com vocês meus amigos visitantes, deliciem-se com as palavras. Faço, desde já votos de que as palavras cor-de-rosa preencham as nossas vidas. "Abram-se alas"... elas aí vão...
(Foto de Serenidade)

As Palavras Cor-de-rosa e As Palavras Cinzentas


Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta. O que são palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas, como, Obrigado, Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim. Palavras tão doces que são como mel no coração.

Seria obra do Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê, preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas.

Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de-rosa e lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz favor… Os vendedoras de palavras cinzentas vendiam sobretudo Cabeça de alho chocho, Não me chateies, Cala o bico…

A princípio, comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do que palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam bons negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham clientes uma ou duas vezes por ano, por alturas de grandes zangas.

No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma greve de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra freguesia, Está bem arranjado, homem, Obrigado pelos seus serviços mas está despedido . Havia guerras entre famílias, divórcios, casais que já não se entendiam. Invejas entre irmãos, zangas… Comprava-se vários Já não gosto de ti, Acabou tudo . Nas lojas de palavras cor-de-rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de ti , ficavam por vender.

— Para o diabo com as palavras doces — diziam os homens. — São caras e não trazem nenhum benefício.

Os vendedores de palavras cor-de-rosa, desolados, já não sabiam onde as armazenar.

As lojas cor-de-rosa fechavam umas atrás das outras. Passa-se, Fechado por morte do proprietário, Liquidação total, Quinze palavras cor-de-rosa pelo preço de uma. Mas, mesmo a preços módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas de palavras cinzentas, essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem conhecido, as palavras feias são contagiosas. Se no recreio te lembrares de lançar uma, receberás dez em troca! Abriram-se mesmo lojas especializadas em palavras feias, risos grosseiros, insultos horríveis. E os vendedores cinzentos trabalhavam dia e noite para descobrirem jóias raras, as palavras mais horríveis e mais maldosas!

Como receavam ficar sem provisões, como costuma acontecer em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer conservas de palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias, empilharam-nas nos armários da cozinha, nos guarda-fatos, debaixo das camas.

E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno gracejo, à mais insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico, Vai ver se chove, És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por adiante!

Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos. Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos, para se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se sumo de peúgas pretas, no meio de gracejos do género:

— Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito pouca saúde!
E, quando se abriam as prendas, era um concerto de gemidos:

— Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de facto, o presente que eu mais receava.

Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes das férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de palavras cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na auto-estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos: Ó aselha, vai mas é plantar batatas!

À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a brilhar. Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de braços abertos:

— Está bom tempo! Que maravilha! Obrigada, amigo Sol… Oh, meu Deus, como gosto do Sol…

Em vez disso, ouvia-se agora:

— Que calor horrível! Bolas! Kêkalôr!

Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam bebés. A Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de-rosa!

No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter ficado uma palavra cor-de-
-rosa meio gelada. “Eu”, dizia Pedro, “não quero um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz bom dia, nem obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se encontro o Sol.” O rapazinho caminhou durante muito tempo, escalou colinas geladas, pequenas e grandes montanhas, vulcões extintos. Por fim, ao cabo de meses e meses de árdua caminhada, chegou exausto e transido à casa das nuvens.

— Toc, toc — bateu. — Venho à procura do Sol.

— Oh, oh! — exclamou a nuvem-chefe, que tinha tomado posse do céu cinzento. — Olhem só para isto… Um fedelho ridículo que vem à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a ninguém! Desde que as palavras cinzentas tomaram o poder, somos nós, as nuvens pardacentas, que somos os chefes.

Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara.

O rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A nuvem olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via ninguém chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos estavam gelados, todos os corações estavam frios.

— Pára com isso imediatamente! — gemeu a nuvem. — Se não, vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm habitualmente a lágrima ao canto do olho.)

Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o ajudar.

— Olha — disse-lhe. — Aquela bolinha amarela ali em baixo é o Sol.

Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola de bilhar perdida na imensidão do azul: era o Sol, que estava a desaparecer por causa dos maus-tratos.

Já no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção da pequena bola amarela.

— Bom dia — cumprimentou. — Vim buscar-te. Tudo se tornou cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos rimos, nunca dizemos palavras delicadas. Precisas de voltar.

E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando naquela “época cor-de-rosa”.

— Precisas de voltar — insistiu Pedro.

— Vou, a título de experiência — resmungou o Sol. — Mas atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu regresso será mais agradável.

O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa: Por favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado , Gosto muito de ti, Amor da minha vida, Se não se importa , etc. O rapazinho meteu-as nos bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado. As que ele conseguisse levar.

Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso.

De repente, nos engarrafamentos, as pessoas começaram a desdobrar os papelinhos cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo tão bonito, não acha?, Pode ir à minha frente, não tenho pressa nenhuma…
Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos simpáticos e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que podes entrar no jogo…

Em casa, as crianças voltaram a usar palavras cor-de-rosa: Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz de propósito…

Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas festas da passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de saúde.

O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua nuvem cor-de-rosa. E, juro-te, os vendedores de palavras cor-de-rosa começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em delicadeza, em cortesia, em civismo… Foi como mel no coração.

Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas tinham. E, quando alguma se lembrava de vir meter o nariz, garanto-vos que não ficava por muito tempo.








domingo, 1 de março de 2009

Era uma vez...


(Foto de Serenidade)


"Era uma vez um anão que teve três filhos: O Becas, o Bicas e o Bocas. Este último era tão pequeno, tão pequeno que casou e foi viver dentro de um sapato nº 32."

Um dia, igual a um outro qualquer, com a particularidade de se tornar diferente, Bocas enveredou numa viagem estranha. Estava deitado, junto com sua linda esposa, quando começou a ser chamado. Achou deveras estranho a voz de sua avó, que havia partido para outras paragens há cerca de doze anos, estar tão presente, tão clara. Não, não poderia ser um sonho, afinal de contas era uma voz tão clara e viçosa, como aquela que em criança o retirava das suas brincadeiras para o almoço, o lanche ou o jantar! A saudade que a voz lhe causou, actuou de tal forma no seu raciocínio que acabou por lhe causar amnésia, esqueceu que ela já não estaria entre eles e começou a caminhar no sentido de procurar essa voz que, a cada passo dado, mais próxima, mais clara e mais meiga se evidenciava. A certa altura deparou-se com uma luz resplandecente e, por entre esses raios luminosos que ofuscavam a sua visão, conseguiu vislumbrar vários vultos, todos eles com vestes brancas tão cintilantes que quase se tornavam transparentes. O seu olhar cruzou-se com um desses seres de luz e, mesmo estando o seu olhar ofuscado com tanta luminosidade, sentiu que…sim era sua linda e adorada avó que o tinha encaminhado até aquele local. A emoção era de tal ordem que as lágrimas começaram a correr pela sua suave face, como um riacho que flui, calmamente, sem nenhum obstáculo. A sua avó sorria, aquele sorriso que ele tão bem conhecia, abrindo-lhe os braços na ânsia de o abraçar. Sem mais esperar Bocas, correu e abraçou-a intensamente. Nesse momento sentiu como que se estivesse a fundir com o ser luminoso que abraçava, preenchendo-se com uma paz que nunca havia sentido, mesmo que a sua vida tenha sido sempre bastante serena. Seguidamente, de mãos dadas, começaram a rodopiar. Rodopiavam e sorriam, tal como faziam em tempos passados. Mas! Seria mesmo em tempos passado?! Era tudo tão real e presente, que lhe dava a sensação de ter feito uma viagem no tempo. Uma viagem ao passado, com a singularidade de estar num local tão belo que se assemelhava às descrições do paraíso. A certa altura, deparou-se com a serenidade dos restantes seres que os observavam, com um olhar de alegria pura, como se fossem as testemunhas da concretização de um sonho. Bocas parou e o seu olhar tornou-se sério e surpreso. Todos os presentes rodearam-no e deram as mãos formando um círculo. A luz começou a intensificar-se mais e mais, até que sentiu-se desmaiar. Não que as forças lhe faltassem, sentia sim uma explosão de bem-estar e fusão para com o todo que o fez ficar sem qualquer reacção, no seu pequeno corpo não habituado a tal frequência energética. Durante o seu desfalecimento sentiu-se descer, aliás sentiu que o levavam em braços até ao seu quarto, no sapato n.º 32, onde vislumbrou, nebulosamente, a sua esposa a dormir, tranquilamente. Quando sentiu que o haviam pousado, com cuidado, na sua macia cama, sorriu, mais uma vez, para o rosto que continuava a observar, a sua amável avó. Continuou a dormir e quando alvoreceu contou o sucedido à sua amorosa esposa que o inquiriu da veracidade do seu relato. Bocas insistiu: “Sim, estive nos braços da minha avó e foi tão bom voltar a senti-la, a ouvi-la.” Sua esposa encolheu os ombros e deixou-o a viajar nos seus próprios pensamentos.


Texto publicado no blog da amiga Cátia, como resposta ao seu desafio.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O meu Farol


(Foto de Serenidade)


Há uma luz que me ilumina! Nos derradeiros recônditos espaços do meu ser, vejo-a, é maravilhosamente luzente e quer, com o astro-rei parecer. Cintila como um pirilampo que, agitado, embate em todos os cantos e recantos, na tentativa de se libertar das amarras que, ainda, o prendem nas clausuras de uma criatura deveras amada. Uns dias está mais viva outros mais entristecida. Ora cresce ora se inibe de aparecer, de entrar na sala mais nobre, no espaço onde a alma e o coração moram, onde apenas está a um passo de luzir, mesmo até a partir do simples, mas tão bem recebido, sorrir. Há uma luz que se quer expressar, a toda a hora e em qualquer lugar. Há uma luz que ainda se oprime, nos dias sombrios, deveras escorregadios. Ela olha-se, sem espelho que o permita, vê-se linda e primorosa, deveras carinhosa. Tenta dar-se e reflectir o seu encanto, mas nem todos a entendem, soltando-a num canto. Sabe que nada pode pedir a não ser o seu intento de manter-se a luzir e, nos dias de Inverno ser o lírio da Primavera, o girassol do Verão e o crisântemo do Outono. Por vezes sente-se encurralada, nos pensamentos fechados. Outras a fluir, daqui para ali, dali para aqui, num diálogo que, mesmo na ausência de som, se efectua deliciosamente pelos olhares luzidios, deveras enamorados. Há uma luz que de mim irradia, por vezes um farol num deserto sombrio. Mesmo nas tempestades não funde, apenas quer amar, ser amada e estar, para sempre, enamorada.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sombras...

(Foto de Serenidade)

Percorro os recantos bem escondidos do meu ser. Encontro sombras invisíveis que percorrem os alicerces, que suportam este frágil corpo. Por entre o nevoeiro que assola, de quando em vez, os faróis luminosos, constantemente atónitos com a perfeição da vida, está, lá bem ao longe (mais perto do que se imagina), a verdade absoluta desta existência. Se verdades absolutas existissem, diria que a razão está ao meu alcance. Mas como tudo é relativo, apenas a minha verdade visualizo. E, a minha verdade, percepcionada pelo olhar que fui construindo ao longo destas três décadas (atribuladas, a última, pode-se dizer, perfeita), é luzente. Apesar, do véu conseguir apartar, existem as sombras, umas que me foram incutidas e outras auto-erigidas. Vêm e vão, qual maré serena, esquiva-se entre os sulcos do meu templo e percorre friamente a medula espinal, até ao centro coordenador deste canastro débil. O director ordena as acções, qual chefe com toda a sua razão, que logo vê seu projecto desmoronar, porque se permitir deixar levar. Não aplicou a certeza da perfeição, não percepciona a capacidade de realizar com êxito todos os projectos por si idealizados, que não depende do outro para o sucesso da sua obra. A obra mais magnânima desta existência, a vida, à qual não podemos permitir falência. É nossa, dela estamos imbuídos, até quando nos sentimos perdidos. Por entre o nevoeiro, visualizo a perfeição de todos os meus actos em acção. E se nada mais consigo discernir, é porque não é o tempo para os poder, de longe assistir, na vida que segundo a segundo construo.